Mulher, violência e economia

Data da Publicação:

07/03/2022

Ana Paula Ferreira
Mãe, mulher,trabalhadora e militante do Coletivo Mulheres pela Democracia

Desde crianças somos marcados por violências veladas que definem o que podemos ou não fazer, ser, falar de acordo com nossa chegada ao mundo enquanto meninos ou meninas. Se por um lado, o garoto foi incentivado o tempo todo a ocupar o espaço público, seja nas brigas por causa de pipa ou num conflito de futebol de rua, a mulher foi a condicionada ao espaço doméstico: cuidar de bonecas, preparar comidinha. Não é sem razão que muitas profissões aceitáveis para o público feminino são um prolongamento do cuidar e por isso é tão comum a mulher enfermeira ou professora, mas não é visto como natural se são engenheiras ou deputadas.
Aceita-se a impulsividade, a energia, a força masculina em se posicionar, e por outro lado, criamos as meninas inseguras, doceis, amarradas no ideário da felicidade conjugal do “príncipe encantado”. Assim, se tornam vítimas fáceis de relacionamentos abusivos, desencorajadas em retrucar o patrão e consumidoras até mesmo compulsivas do setor de cosméticos e vestuários. Por fim, elas são, nós somos, segundo sexo (tomando por base o título do livro de Beauvoir) de três palavras no masculino: do marido ou pai, (na figura de esposas ou filhas), do mercado de trabalho (na posição de trabalhadoras e/ou consumidoras) e do Estado (no papel subalterno de cidadãs).
Essa opressão sentida em termos simbólicos ou físicos é o que marca a violência de gênero, o que é chamado por algumas feministas por “patriarcado”, ou seja, uma nítida demarcação de poder do homem na sociedade em relação a mulher, um problema de ordem estrutural, pois está na política, nas relações trabalhistas, na cultura e na nossa subjetividade.
Contudo, embora tenhamos o patriarcado a séculos, ele não é igual em todas as épocas nem em todos lugares. Cito dois países para evidenciar de como a economia interfere na relação de gênero: Estados Unidos e Cuba. No caso do primeiro, as mulheres não contam com a salário maternidade, creches públicas são quase inexistentes e a porcentagem de mulheres no Congresso é menos que 30%. Em contrapartida, no país de economia socialista, a presença feminina em cargos políticos na Assembleia é mais de 50%, as creches são públicas, 100% das crianças são atendidas, liberando as mães para o trabalho. Além disso, a licença maternidade é de 4 meses e até que a criança complete um ano de idade há o benefício social que é pago para que algum tutor (mãe, pai ou avó) cuide da criança. O estudo técnico de Cláudia Virgínia Brito de Melo mostra alguns desses dados.
Por que a diferença? Porque, de acordo com a linha neoliberal, o Estado deve intervir o mínimo possível, de modo que as empresas e os indivíduos possam operar por si só. A retórica é de democracia, mas a evidência na concretude e nas porcentagens é que a vida digna é apenas para usufruto de algumas. Uma ilustração disso é pensarmos nas inúmeras mulheres invisibilizadas vendendo de porta em porta os produtos de revistas de cosméticos em troca de um percentual ínfimo e sem nenhuma garantia trabalhista, enquanto poucas, na maioria das vezes brancas, são colocadas nas capas, como símbolo do poder, numa lógica de evidenciar o sucesso individual.
No Brasil além do patriarcado e do capitalismo, ambas as estruturas que condicionam a mulher em papel subalterno, temos também outro fator: a questão de nosso subdesenvolvimento econômico, que empurra as mulheres pobres para serviços precarizados, de baixa remuneração e nem sempre com direitos trabalhistas garantidos. Assim a mulher é duplamente explorada, haja vista que sofre exploração por ser trabalhadora e por ser mulher, lembrando que seu salário é geralmente inferior ao do homem, mesmo realizando as mesmas funções. Somada a essa desigualdade econômica, a violência doméstica no Brasil mata mais que câncer e acidente de trânsito. Quando se destaca não apenas a condição de gênero, mas também a questão étnica, tem-se um dado ainda mais perverso contra a mulher negra, que representa 74% da violência de gênero no Brasil.
É importante percebermos que não diminuímos a violência simplesmente com leis mais enérgicas. É necessário que cidadãs usufruam de direitos políticos, econômicos e sociais. Já é comprovado na Sociologia que quanto mais investimento social, menos violência se tem, e por isso, que um feminismo branco, liberal, que apenas nos fale “Você pode ser o que quiser”, é um feminismo falso, ardiloso, porque deixa apenas a cargo do indivíduo um problema que é social, e assim, nada muda a situação de incontáveis mulheres que estão abaixo da linha da miséria, que são objetificadas pela sociedade como propriedade do marido, do mercado ou do Estado.
Enquanto não conseguimos a superação de um modelo econômico de sociedade no qual o ser humano deixe de explorar o trabalho alheio, enquanto não superamos a abismal desigualdade entre homens e mulheres, é necessário o feminismo radical, que não se coaduna nem com o capitalismo nem com o patriarcado e que fortalece as trincheiras na consolidação de políticas públicas, que não abandona as mulheres a própria sorte.

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