Generosidade e mesquinhez
Ana Paula Ferreira
Supervisora escolar e mestre em Educação
Generosidade! Palavra às vezes confundida com caridade. Imaginamos sopa aos moradores de rua em época de Natal (afinal, a fome só existe nessa época) ou em balas lançadas de cima de uma caminhonete para crianças da periferia, as quais catam o doce que se espalha pelas ruas por onde o cheiro das fezes dos animais se mistura com o lixo pelas vias públicas. Os doadores, pessoas de coração piedoso, se enchem de alegria, tiram fotos e colocam em suas redes sociais.
Não. Generosidade não é caridade. Trata-se de doar, de partilhar, mas não é para fins rasteiros de promoção ou de status social. Está ligada a uma percepção de ética planetária, de que tudo está interligado.
Vou dar um exemplo de quem manifestou um olhar pleno sobre o todo. Tio Vicente é marceneiro aposentado, pessoa forte e de coração enorme. Outro dia arrancou com a enxada os matos que nasciam na beirada do meio-fio de todo o quarteirão da rua e antes que eu perguntasse o motivo ele se explicou: “olha, se eu deixasse crescer teria mais insetos que poderiam picar o vizinho e se ele ficasse doente, poderia passar doença para dentro da minha casa”.
Ser generoso é compreender que o bem faz bem, não porque se vai para o céu. Generosidade faz bem porque saímos da condição de parasita, daqueles que apenas consomem o que está posto, a água, ar, solo e alimentos e nos colocamos no papel de quem também quer contribuir para o espaço ambiental e social. É o oposto de mesquinhez.
Mesquinharia é a perspectiva estreita de querer benefícios apenas para os seus e por isso pouco agrega para a humanidade. É o banqueiro que lucra com alta taxa de juros mesmo sob o endividamento de milhões, a mulher de elite que não quer pagar os direitos trabalhistas da emprega doméstica, é o latifundiário que incendeia matas para produzir pasto, o pastor que ganha propina do Ministério da Educação ou o presidente que nega que a fome exista no Brasil.
A mesquinharia não está apenas nos gestos, no comportamento humano, mas num campo de pensamento que transfere apenas para o indivíduo a carga de sua inteira responsabilidade. Nesse campo, é como se não existisse o infortúnio. É como se não houvesse o acidente de trabalho que não é coberto pela Previdência Social; ou o desalojamento por falta de pagamento do aluguel, ou a mulher que está sem moradia porque fugiu do marido agressor. É como se tudo se resolvesse na força de vontade do indivíduo e na sua perseverança.
Fé e força são ótimos combustíveis para ação humana. Mas é necessário mais que isso e daí que entram as políticas públicas. Quando há construção de creches, postos de saúde, universidades, há emprego para o pessoal da construção civil. Assim que construídos esses prédios públicos, há contratação de outros trabalhadores e tudo isso gira a economia e a empregabilidade. Se há política pública séria, de fiscalização e multa, isso diminuí a queimada e consequentemente ocorre um controle do preço do alimento, favorecendo a preservação ambiental como também a alimentação acessível.
Mesquinhez é umbigo. Generosidade é mão que acolhe, é braço que trabalha, é cabeça que sabe que o mundo é bem mais amplo do que pessoas ligadas pela religião ou tipo sanguíneo. Mesquinhez é ignorar enquanto famílias perdem entes queridos para o coronavírus. Generosidade é o trabalho invisível de médicos e enfermeiras que se doaram no atendimento aos enfermos. Mesquinhez é o legado da morte, da não vacina, do deboche, da necropolítica. Generosidade foi a luta incessante para que as pessoas tivessem o que comer.
Conceição Evaristo já dizia que a periferia e a população pobre e negra sobrevivem porque “combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer”. Só há humanidade porque ainda há preocupação uns com os outros. Aliás, segundo Bauman, nos diferenciamos de outros animais por conta da nossa capacidade de cuidar do próximo e isso foi observado entre os antropólogos diante de um fóssil de criatura humanoide que tinha o osso quebrado nos primeiros anos de vida. O interessante foi que esse ser só veio a falecer na vida adulta. Isso significa que não foi largado ao azar da fratura óssea. Alguém cuidou dele e foi possível que seguisse com o bando. Bando… grupo, coletivo. Abandono… estar fora do bando. Que nossa condição humana de cuidado, de generosidade, nos lembre que é possível um outro país, uma outra sociedade para que consigamos um lugar melhor para viver em comunhão uns com os outros e com o meio ambiente, sem deixar ninguém de fora de seus direitos humanos.