A gente se acostuma: ponto de vista de uma mulher

A gente se acostuma a ser interrompida a todo momento e, por ser interrompida, vamos deixando de falar.
A gente se acostuma com as vozes de que nos dizem sobre nossa estética, nossos cabelos brancos, nossa barriga para além da calça, nossas marcas de expressão. E ao escutarmos demais, olhamos o espelho como inimigo, nos enchemos de remédios e nunca nos contentamos com o nosso corpo.
A gente se acostuma com os gritos da vizinha que apanha do marido, com o assédio no trabalho ou com as músicas que sexualizam as “novinha”. Por acostumarmos, a violência enterra vítimas, mata almas e abusa de meninas. A gente se acostuma com o fato de as mulheres exercerem tantas funções sem remuneração e com a política institucional ser exercida mais por homens. Daí que não refletimos sobre o fato de haver tão poucas creches, asilos, postos de saúde, pois para governos neoliberais, o cuidado da criança, do idoso ou do doente de uma família é obrigação da mulher e não do Estado.
A gente se acostuma a tirar a louça da mesa, a lavar a roupa, a deixar tudo limpo e organizado, a acompanhar a saúde, higiene e as tarefas escolares dos filhos. E os homens, por acostumarem, acham que essas tarefas são apenas de nós, mulheres.
A gente se acostuma a tratar o menino como se fosse bebê e a menina como moça e depois ficamos espantados ao ver muitos rapazes imaturos, negligentes no trânsito, na escola, no trabalho, que não assumem a paternidade ou qualquer outra responsabilidade.
A gente se acostuma a achar que mulher negra é melhor “parideira” ou que seu lugar é apenas no serviço braçal, marginalizado financeiramente e socialmente. Então é esse grupo que sofre mais a violência obstétrica, que tem menos possibilidade de ascensão e se torna invisível nas políticas públicas.
A gente se acostuma com o machismo, ignoramos ou maldizemos o feminismo e, enquanto isso, sobrecarregamos as mulheres com um trabalho não pago, aumentamos a pobreza entre o público feminino e as mães solo, permanecemos um país que se destaca entre os que mais assassinam mulheres apenas por serem mulheres

Ana Paula Ferreira
Membro do Coletivo
Mulheres pela
Democracia

 

 

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