Quem não é solidário, solitário se torna

Luiz Guilherme Sant’ Angelo
Psicólogo

Chega fim de ano, muitas pessoas têm o hábito de organizar os armários e tirar aquelas peças que já não têm mais serventia; recolhem brinquedos dos filhos que não usam mais e encaminham para abrigos ou fazem arrecadação de alimentos para doar para famílias que mais precisam.
É tão curioso esses movimentos de fim de ano que várias vezes isso se tornou tema de estudos, principalmente no Brasil. Tem uma pesquisa feita em 2020, pela Unilever, onde entrevistaram 1.500 brasileiros e, desses, 96% disseram que desejavam ser mais solidários com o findar do ano, mas de fato apenas 27% efetivaram ações de solidariedade. Outro dado apontado nessa pesquisa é que geralmente as ações são individuais, isoladas do coletivo.
Outra pesquisa que foi realizada pela Charities Aid Foundation (CAF), chamada de World Giving Index 2021 (WGI) ou em tradução livre “escala de solidariedade”, que contou com 121 mil pessoas entrevistadas ao redor do mundo. De acordo com essa pesquisa, o Brasil subiu quatorze posições em relação à última e ficou em 54º lugar numa lista de 114 nações. Essa subida de posição foi atribuída à solidariedade dos brasileiros durante os momentos mais críticos da pandemia de covid-19.
Somos um país sabidamente marcado pela desigualdade social, onde muitas pessoas têm bem menos que o básico para viver. Não é incomum, mesmo em outros períodos do ano, vermos quem tem um pouco mais de recursos – e os mais ricos – se mobilizando em prol de ajudar pessoas com mais vulnerabilidades sociais.
Seria estranho se no Brasil a solidariedade não fosse um valor tão presente, afinal, são muitas dessas redes de solidariedade que acabam minimizando os impactos que a pobreza, a fome, a falta de moradia e saúde geram para muitas famílias, já que temos um Estado insuficiente na garantia de direitos por meio de políticas públicas.
Falar de solidariedade no Brasil então é falar da ferida histórica que carregamos e, ao mesmo tempo, é falar das redes de apoio, o que torna o tema bastante ambíguo. Com a psicanálise aprendemos que os sentimentos e as motivações humanas não são puros, mas ambivalentes, complexos, um misto de várias emoções, sensações, palavras e memórias. Veja bem, a solidariedade nunca é só ela. A culpa é um sentimento que geralmente vem junto da solidariedade, quero dizer, as vezes sentimos tanta culpa que desenvolvemos um sentimento mais solidário, mais empático, o que nos permite lidar com a culpabilização.
Desse modo a psicanálise pode nos levar a repensar o próprio sentido da palavra solidariedade. Ela tem diversos significados e, o que mais gosto, é um que diz que solidariedade é a capacidade que temos de nos identificar com as misérias do outro. E gosto desse significado porque, do ponto de vista evolutivo, o que nos fez sobreviver e chegar até aqui foi justamente nosso senso de cuidado, preocupação e proteção para com o outro, principalmente quando esse outro está menos favorecido que eu. Esse é um grande ganho no pacto civilizatório.
Conseguir olhar e se identificar com as misérias, com as dificuldades do outro significa que deixamos uma posição onipotente, saímos do centro e passamos a compreender que o mundo é um lugar de tantas outras pessoas, que desejam ser feliz, tanto quanto nós mesmos. A saída desse lugar mais egóico, que é a saída de um narcisismo, é o que nos permitirá construir uma cultura de solidariedade.
Uma coisa reflexão que trago comigo é: quem não é solidário, solitário se torna e uma das coisas que faz a vida ter mais sentido, é nossa capacidade de construir laços afetivos, capazes de modificar a realidade material e simbólica.
E olha só que curioso: a palavra solidariedade começa com o prefixo ‘sol’, o que dá para entendermos que é uma atitude que ilumina, que clareia, que nutre.
Que possamos nesse novo ano que começa criar mais redes de solidariedade, de apoio e cuidado uns para com os outros, porque no fim das contas, nós, temos a nós!

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