Quem são eles?
Esse ano tive a alegria de ir a uma peça teatral que dá nome a esse texto e me deparar com uma produção amargamente fantástica. Digo amarga porque o doce às vezes envenena a consciência, a deixa letárgica e precisamos do amargo para nos colocar em pleno funcionamento cognitivo e corporal. Em meio a tanto pensamento socrático voltado ao “Quem sou eu?”, a peça desponta trazendo o olhar para “Quem são eles?”, numa busca de entender o que está acontecendo ao redor, porém, sob os entraves dos aparelhos de controle que limitam a capacidade de pensar e de refletir de maneira séria e ética.
Se por um lado há uma tentativa de sair de um paradigma narcísico e entender o outro, essa visão fica embaçada na medida que o outro é colocado como alguém insuportavelmente distante, diminuindo a noção de alteridade, na qual o outro me afetaria e eu afetaria o outro.
Talvez essa distância realmente aconteça com o modo de vida que estamos escolhendo, nos fechando em bolhas e tirando do caminho todos os indesejáveis, os diferentes, os que nos irritam. E daí que a peça embora fale do outro, também diz sobre nós, afinal, em que medida tentamos dialogar com o diferente? E se não criamos essas pontes, como pretendemos cuidar da democracia?
Democracia é uma criança pequena. Quando li essa ideia num livro da Tiburi achei lindo. E realmente ela é extremamente indefesa e está engatinhando para o que pode ainda se desenvolver. Há aqueles que não colocam apreço a sua beleza e apregoam que há coisas mais importantes, tais como saneamento ou saúde. Contudo, não levam em conta que uma coisa está atrelada à outra. Janine mostrou isso muito bem no livro “A boa política”, no qual aponta que após a abertura democrática o Brasil teve ganhos extraordinários. Segundo o autor, sob o período de ditadura, mais de 80% dos municípios tinham IDH baixo e atualmente esse percentual é menor do que 1%. Cabe reforçar que no período que os militares estiveram no poder, havia quantidade insuficiente de escolas para suprir a demanda, a violência do Estado era acobertada, a desigualdade alta e ainda nos deixaram como herança uma imensa dívida pública. Portanto, ter democracia é condição para avanço de políticas públicas.
Mas, não é isso que a cúpula da fábrica de mentiras quer. Querem destruir a democracia e por isso tentam silenciar professores, jornalistas, artistas, cientistas e qualquer um que busque colocar em xeque as corrupções, falcatruas e negligências. É como se estivéssemos dentro da obra “1984” de George Orwell, sob o Ministério da Verdade, chamado de Miniver. Aliás, esse nome é proposital, para deixar clara a diminuição da verdade, ao ponto de se tornar minúscula.
Sem controle do que seja verdade as pessoas são ludibriadas a acreditar em outras, nas quais depositam sua fé e nem sempre isso é uma decisão sábia.
Não ter uma verdadeira democracia serve a quem quer se apropriar do poder para fins particulares, atendendo ao grande capital, bancos, corporações, latifundiários e pessoas que lucram com a miséria. Daí que façam aclamação a ditadura e defendam da maneira mais vil seus torturadores.
Na obra “Senhor das moscas” o avião que levava crianças que fugiam da guerra foi atingido. Elas aterrissaram numa ilha e para se organizar, ficou acordado que quem
estivesse de posse de uma grande concha que foi encontrada, falaria. A concha era o símbolo da comunicação, do meio para se atingir a linguagem e as bases democráticas. Quando não há mais diálogo reina a violência, a barbárie e morte, no qual quem ganha são que esperam pela podridão, para se alimentar do que está se decompondo.
Quem são eles, senhores das moscas? Quem são os que ganham com a fome, com o desemprego, com a falência de pequenos empresários? Os donos do capital não são nossos parceiros de luta por uma democracia, afinal seus interesses não estão assentados na preservação da vida. Mas, quem são eles, vizinhos, familiares e colegas que repetem os discursos contrários a defesa dos direitos humanos ou a processos democráticos? Com eles ainda talvez seja possível conversar, dialogar, esperançar, para que evitemos que a concha da comunicação se torne objeto descartável.
Ana Paula Ferreira
Supervisora escolar e mestre em Educação