O perigo de fofocas múltiplas

Ana Paula Ferreira
Supervisora escolar e mestre em Educação

Se há “O perigo da história única” em tempos de modernidade líquida, sob a dificuldade em saber a veracidade das inúmeras informações que nos chegam diariamente, há o perigo de fofocas múltiplas, as quais, em certo sentido, também não deixam de convergir para uma história única.
A autora Chimamanda nos alerta sobre a hegemonia de uma narrativa que alimenta preconceitos e injustiças sociais uma vez que grupos historicamente desprivilegiados são estigmatizados… negros e latinos são associados ao mundo do crime; indígenas brasileiros a preguiça e as mulheres às pessoas destemperadas e desprovidas de racionalidade para cargos de liderança.
Além da difamação a grupos socialmente minoritários, pode ocorrer a calúnia ao “outro”, enquanto ser individual. Nesse caso é a fofoca. A régua não é a dos Direitos Humanos, mas pelas concepções de quem as emite. Esse é o termômetro. Assim, se o avaliador é alguém mais moderado, o outro é sempre radical e o mesmo vale para a situação contrária. Não se trata do comentário de quem valoriza a pluralidade, mas de quem quer simbolicamente eliminar o que é diferente.
Isso porque a fofoca não tem por finalidade possibilitar que o outro reflita, repense e mude até porque “o outro” não é o destinatário da conversa, mas o conteúdo em questão. O outro não é o sujeito, mas sim, objeto e, portanto, é coisificado.
Todos nós somos suscetíveis a participar da detração, afinal ela possibilita o sentimento que somos dignos de confiança na partilha de informações alheias, independentemente de serem falsas ou verdadeiras. Há um vínculo entre os que trocam os dados, numa sensação de ser superior a quem está sendo caluniado.
A fofoca é múltipla e atende ao provérbio “quem ouve um conto aumenta um ponto”. Pode ser elaborada no ambiente de trabalho, na família, nos espaços de lazer, religiosos e os mais variados lugares. Se, por um lado, a luz em excesso cega, o excesso de mensagem provoca desinformação. Na mesma analogia, se um deficiente visual precisa de um suporte para se locomover, o cego de informação, terá como crivo a confiança depositada em quem lhe transmite a mensagem. Apoia-se na opinião naqueles e naquelas por quem tem simpatia, consideração e respeito e por isso não é uma comunicação pautada apenas na racionalidade. Há a questão subjetiva, afetiva, emocional.
Isso pode trazer várias consequências. Dor e sofrimento para quem se percebe caluniado, sem saber como reagir, porque o direito a voz é negado, afinal, não sabe exatamente o que é dito e nem quem diz. No caso de detração política é ainda pior, pois ceifa a democracia, e o valor do debate é substituído por invenções para tirar o foco de propostas, de projetos que poderiam ser construídos.
Os autores do livro “Como as democracias morrem” analisaram que antes havia uma ditadura bem delimitada que acabava com os processos democráticos e que hoje o “retrocesso democrático começa nas urnas”. Podemos pensar inclusive, que o retrocesso se inicia antes das urnas, uma vez que a mentira ganha mais espaço, seja diante da letargia do Judiciário em agir no combate à propagação de notícias falsas, seja pela ambição de empresas que gerenciam a comunicação e lucram com as boatarias, e até mesmo por conta de uma parcela da população que se exime da responsabilidade de observar, de buscar saber outras versões e simplesmente compartilha mensagens falsas.
Não é o fato de estar acostumado a fofoca, que ela deve ser naturalizada. Ela não está no nosso DNA, ela é cultural, e como tal, precisa ser repensada. Se queremos um ambiente democrático isso perpassa em falar “com” o outro e não “do” outro. Se queremos um ambiente democrático não significa sair em busca de onde a fofoca surgiu, porque democracia não se faz com perseguição. Por outro lado, também, não podemos fingir que ela não exista, pois isso significaria aceitar que histórias sejam apagadas ou rasgadas por difamações.
Enquanto educadora, lembro de Paulo Freire quando ressalta sobre nosso inacabamento, já que estamos em constante formação. Isso dá certa leveza, pois há liberdade para assumir falhas, abrindo brecha para disposição em acertar, principalmente quando a reflexão se faz presente para desnaturalizar determinadas posturas. Afinal, se projetamos beleza, justiça, transparência para o mundo, é incoerente persistir com a detração, pois significaria um ataque não apenas às pessoas, mas à democracia e à semente de um novo projeto de sociedade.

 

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